terça-feira, 24 de março de 2009

TABACO ENSINA O CAMINHO

por Marcelino de Queiroz
extraído do Livro O Alimento dos Deuses (Terence Mackena)


Enquanto os "iatroquímicos" do grupo de Paracelso disseminavam o uso do ópio na Europa, um exótico recém-chegado entrava silenciosamente no palco europeu. O tabaco foi o primeiro resulta­do, e o mais imediato, da descoberta do Novo Mundo. Em 2 de novembro de 1492, menos de um mês depois de sua primeira chegada ao Novo Mundo, Colombo desembarcou na costa norte de Cuba Ali o Almirante do Mar Oceano despachou dois membros da tripulação, carregados de presentes, para o interior da ilha, onde deveria residir o rei das muitas aldeias costeiras que ele vira. Sem dúvida, ainda havia alguma esperança na mente do almirante de que seus homens voltassem com notícias de ouro, pedras preciosas, madeiras finas e especiarias - a riqueza das Índias. Em vez disso, os batedores voltaram com um relato de homens e mulheres que inseriam parcialmente rolos de folhas acesas nas narinas. Esses rolos acesos eram chamados de tobacos e consistiam em ervas secas enroladas numa folha grande. Eram acesos numa extremidade e as pessoas sugavam na outra e "bebiam a fumaça" , ou inalavam, uma coisa totalmente desconhecida na Europa.
De Ias Casas, bispo de Chiapas, que publicou o relato de Colombo que traz essa descrição, acrescentou a seguinte observa­ção:
Sei de espanhóis que imitam esse costume, e quando repreendi a prática selvagem eles responderam que não ti­nham poder de refrear o hábito. Apesar de os espanhóis ficarem extremamente surpresos com esse costume, ao expe­rimentá-Io eles começaram a imitar o exemplo dos selvagens."
Quatro anos depois da primeira viagem, o eremita Romano Pane, que Colombo deixara no Haiti no final da segunda viagem ao Novo Mundo, descreveu em seu diário o hábito nativo de inalar a fumaça do tabaco com a ajuda de um instrumento feito de osso de pássaro, inserido no nariz e pousado sobre tabaco espalhado sobre um leito de carvões. As conseqüências dessa simples observação etnográfica ainda precisam ser calculadas. Ela introduziu na Europa um meio extremamente eficiente de utilizar drogas - inclusive muitas drogas potencialmente perigosas - no corpo humano. Tomou possível a pandemia do fumo em todo o mundo. Era a rota mais rápida e facilmente abusada para administrar o ópio e o haxixe. E foi o ancestral distante do vício de fumar cocaína em forma de crack e PCP. Além disso, deve ser dito, toma possível o mais profundo dos êxtases induzidos por alucinógenos indóis, a prática raramente encontrada, porém incomparável, de fumar dimetiltrip­tamina.

TABACOS XAMÂNICOS

Fumar tabaco era um hábito disseminado na América do Norte na época do contato com os europeus. Ainda que o hábito de cheirar pós alucinógenos contendo DMT também fosse comum na área cultural caribenha, não há relatórios confirmados de que outros materiais, além do tabaco, fossem fumados.
A alta cultura maia que floresceu até meados do século IX na América Central tinha um relacionamento antigo e complexo com o tabaco e o hábito de fumá-lo. O tabaco dos maias do período clássico era o Nicotiana rustica, ainda usado atualmente entre populações aborígines na América do Sul. Essa espécie é muito mais potente, quimicamente complexa e potencialmente alucinó­gena do que as categorias do Nicotiana tabacum disponíveis hoje em dia. A diferença entre esse tabaco e o cigarro é profunda. Esse tabaco selvagem era curado e enrolado em charutos que eram fumados. O estado semelhante ao transe que se seguia, parcialmen­te sinergizado pela presença de compostos que incluíam inibidores de OMA, era fundamental para o xamanismo dos maias. Antide­pressivos recentemente lançados, do tipo inibidor de OMA, são distantes parentes sintéticos desses compostos naturais. Francis Robicsek publicou vários textos sobre o fascínio maia com o tabaco e sua complexidade química:
Também deve-se reconhecer que a nicotina não é absolu­tamente a única substância bioativa na folha de tabaco. Re­centemente foram isolados alcalóides do grupo da harmala, harmânicos e não-harmânicos, dos tabacos comerciais cura­dos e de sua fumaça. Eles constituem um grupo químico de betacarbolinas que incluem a harmina, a harmaIina, a tetrai­droharmina e a 6-methoxy harmina, todas com propriedades alucinógenas. Ainda que, até agora, nenhuma variedade nati­va de tabaco tenha sido analisada em busca dessas substân­cias, é razoável supor que sua composição possa variar gran­demente, dependendo da variedade e do crescimento, e que alguns tabacos nativos possam contê-Ias numa concentração relativamente alta. 8
O tabaco era e é o adjunto das plantas alucinógenas mais poderosas e visionárias, sempre presente em todos os lugares das Américas em que elas foram usadas de modo tradicional e xamâ­nico. E um dos usos tradicionais do tabaco envolveu a invenção dos primeiros enemas, no Novo Mundo. Peter Furst pesquisou o papel dos enemas e clisteres na medicina e no xamanismo mesoamerica­nos:
Só recentemente veio à luz o fato de que os antigos maias, como os antigos peruanos, empregavam enemas. Descobriu­se que as seringas de enemas, ou clisteres narcóticos, e até mesmo rituais de enemas, foram representados na arte maia, e um exemplo notável é um grande vaso pintado que data de 600-800 A.D., onde um homem é representado segurando uma seringa de enema, aplicando o enema nele mesmo e fazendo uma mulher aplicá-Ia nele. Como resultado dessa cena recém-descoberta, o arqueólogo M. D. Coe pôde identi­ficar como uma seringa de enema, em outro vaso maia pinta­do, um curioso objeto seguro por uma deidade jaguar. Se os enemas dos maias antigos eram, como os dos índios peruanos, intoxicantes ou alucinógenos, eles podem ter consistido em balehé fermentado (hidromel). O balehé é uma bebida muito sagrada, e pode ter sido fortificada com tabaco ou infusões de sementes de ipoméia. Infusões de datura ou até mesmo de cogumelos alucinógenos podiam ser tomadas assim. Claro que eles também podiam ter usado somente uma infusão de tabaco,"

TABACO COMO REMÉDIO DE CHARLATÃES

Qualquer droga que passa a ser utilizada termina inevitavelmente associada a uma quantidade de teorias e tratamentos médicos charlatães. O abuso da cocaína, como veremos, foi precedido pela moda do tônico Vin de Mariani, e a heroína foi louvada como cura para o vício da morfma. Antes de nos afastarmos dos rituais de enemas dos maias, considere que em 1661 o médico dinamarquês Thomas Bartholin recomendava não somente enemas de suco de tabaco mas também enemas de fumaça de tabaco aos seus pacien­tes:
Quem já engoliu tabaco por acidente pode testemunhar seu efeito purgativo. Essa propriedade é empregada no clister de tabaco usado como enema. Meu amado irmão Erasmus mostrou-me o método. A fumaça de dois cachimbos [cheios de tabaco] é soprada nos intestinos. Um instrumento adequa­do para isso foi imaginado pelo engenhoso inglês.'?
Para não ser ultrapassado pelo inteligente inglês, um médico francês do século XVIII chamado Buc'hoz defendia o uso da "insuflação intravaginal de fumaça de tabaco para curar a histeria" .
Independente dessas aplicações excêntricas e exóticas do taba­co, e a despeito do escárnio do clero, o hábito de fumar espalhou-se rapidamente na Europa. Cada droga, durante o processo de intro­dução num novo ambiente cultural, é saudada como uma "droga do amor" , e essa talvez seja a publicidade mais eficiente. Drogas tão diversas como heroína e cocaína, LSD e MDMA foram em algum momento apresentadas como promotoras da intimidade sexual ou psicológica. O tabaco não foi diferente; parte do motivo para sua rápida disseminação foram as invencionices dos marinhei­ros sobre suas notáveis propriedades como afrodisíaco:
Os marinheiros diziam que as mulheres da Nicarágua fumavam essa erva e mostravam um ardor espantoso. Foi provavelmente esse boato que provocou a popularidade do fumo entre as mulheres da Europa. Talvez tenha sido esse o motivo pelo qual um ex-frade franciscano, André Thevet, conseguiu tanto sucesso ao introduzir o tabaco na corte fran­cesa em 1579.11
Thevet pretendia que o tabaco fosse fumado e usado como droga recreativa. Antes disso, o embaixador francês em Portugal, Jean Nicot, tinha experimentado folhas de tabaco picadas em forma de rapé com o objetivo de curar enxaqueca. Em 1560, Nicot levou uma amostra de seu rapé para Catarina de Médici, que sofria de enxaquecas crônicas. A rainha ficou entusiasmada com os poderes da planta, e por algum tempo esta ficou conhecida como "Herba Medicea" ou "Herba Catherinea". O rapé de Nicot era feito da Nicotiana rustica, em geral mais tóxica, o clássico tabaco xamânico dos maias. O Nicotiana tabacum de Thevet conquistou a Europa sob forma de cigarro e foi a planta que se tomou a base para a tremendamente importante economia do tabaco que se desenvolveu no Novo Mundo colonial.

CONTRA O TABACO

o tabaco não foi bem recebido por todos. O papa Urbano ordenou a excomunhão de qualquer pessoa que fumasse ou usasse rapé nas igrejas da Espanha. Em 1650 Inocêncio X proibiu o uso de rapé na basílica de São Pedro, sob pena de excomunhão. Os protestantes também condenavam o novo hábito, e foram liderados em seu esforço por ninguém menos do que o rei Jaime I da Inglaterra, cujo inflamado Counterblaste to Tobacco apareceu em 1604:
E agora, bons cidadãos, vamos (eu vos peço) considerar que tipo de honra ou bom senso pode levar-nos a imitar os índios abjetos, especialmente num costume tão vil e malchei­roso. ( ... ) Digo sem corar, (por que) nos degradamos tanto a ponto de imitar esses índios bestiais, escravos dos espanhóis, refugo do mundo, e até agora estranhos ao sagrado Concilio de Deus? Por que não os imitamos também andando nus como eles fazem? ( ... )
Sim, por que não negamos a Deus e adoramos o Diabo, como eles fazem?
Tendo deslanchado essa retórica "reação contrária", no que pode ser visto como o primeiro pontapé da abordagem do tipo" di não", o rei voltou sua atenção a outros assuntos. Oito anos mais tarde um relatório dizia que apenas na cidade de Londres havia nada menos que sete mil tabacarias e vendedores de tabaco! Fumar tabaco e cheirar rapé aconteciam ao nível de uma mania moderna.

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