terça-feira, 26 de agosto de 2008

Diário de Um Ato Pela Vida

Sebastião Nicomedes, sobre a chacina de moradores de rua em São Paulo: "Parece um crime sem solução. Por quê?"
Sábado, 16 de agosto de 2008 Num quarto de pensão, eu me encontro, mais uma vez, pernoitando de diárias. Hoje é sábado, e tenho vaga garantida até a manhã de segunda-feira. Depois, será o que tiver de ser. Diante do espelho, escovo os dentes que me restam na boca, felizmente a maioria continua comigo. Se bem que preciso urgente de um tratamento odontológico. Colocar ponte é um sonho. É chato não poder sorrir por um detalhe tão ingrato. Reparo na brancura dos meus cabelos. O tempo passou rápido, e não só pela idade. Já faz quatro anos que os moradores de rua foram assassinados no centro de São Paulo. Faltam três dias para o 19 de agosto, que é lembrado como aniversário de morte dos sete moradores, mortos entre os dias 19 e 22 de 2004. Mataram no dia 19 e voltaram a matar nas outras 48 horas. Fico inquieto. O que motivou os crimes? E quem são os assassinos? Sabe-se que há suspeitos, porém, acusados formalmente, nenhum. Parece um crime sem solução. Por quê? Eu poderia ter sido uma das vítimas. Na época dos ataques morava em um quartinho de pensão aqui mesmo no Brás. Eu havia sido desligado de um albergue, tinha conseguido um dinheirinho curto e paguei como aluguel por trinta dias, que venceram dois dias depois da tragédia.
Com esses pensamentos na cabeça vou pra baixo do viaduto do Glicério, na Associação Minha Rua Minha Casa, onde acontece todo terceiro sábado de cada mês a Feira de Trocas Solidária. Já na entrada os freqüentadores da casa recebem 2 mirucas. Na feira não se compra nada com dinheiro convencional, nem o real, dólar ou euro tem valor lá. A miruca é um tipo de moeda social com as quais se pode adquirir roupas usadas, sapatos, bijuterias, artesanato, salgados, sucos, bolos e doces.
Aos fundos tem a rádio Fala Cidadão, rádio comunitária que só funciona ali, sem freqüência, a mesa de som ligada direto a caixas de som. Um artista em especial me chama atenção. É o Romário, que ficou conhecido depois de ganhar o troféu de artilheiro do campeonato de futsal do albergue Arsenal da Esperança. Sob aplausos ele arranha os primeiros acordes na guitarra, acerta a afinação e puxa Maluco Beleza do Raul Seixas. Às 19h30 da noite fui à Praça da Sé.Tava uma lua grande, porém o ar não tava pra beleza. Um ar sombrio pairava sobre a praça. Um clima estranho, de silêncio e sons tristes.Vejo um gol cor de creme distribuindo comida. Entro na fila pra ganhar um marmitex. Alguém bate no meu ombro já dizendo: "É foda, né não, irmão?" . Olho pra trás. É o Romário, com expressão de arrasado. No dia ele teve nas mãos guitarra e microfone, mandou bem, foi aplaudido, teve os cinco minutos de fama. Segurava agora uma bolsa de saca de farinha de trigo. Dentro algumas bem poucas roupas. Em cima um cobertor tipo os que as transportadoras usam pra proteger os móveis quando carregam mudanças. Romário tava na fé de conseguir vaga de pernoite nalgum albergue, me conta que vem dormindo na rua há dias, sonhando com outra chance de voltar pro Arsenal. Arrasado fiquei eu, não podendo fazer nada pra resolver o problema. Domingo, 17 de agostoNo Anhangabaú tem um grupo com garrafas pets distribuindo chás e pão com manteiga. Tomo uns dois, três copos, e vou circular pelo vale. De longe um cara grita meu nome. Vou caminhando em sua direção pra saber qual que é. Vem correndo pela grama tropeçando, desviando das pessoas que tão dormindo. Reconheço o homem. É o Paulo. Ele conheceu as vítimas do massacre. Tinha muita amizade com o Panthera. "O Panthera era muito louco. Não sei se ele devia, não sei se tinha bronca. Mas não merecia morrer daquele jeito". Paulo é inteligente, pensa pra falar, sonha alto. Diz que é formado e que em 82 passou na prova da USP. Sobre a política fala que os candidatos são todos iguais, qualquer um que chega no poder, quando senta lá, não olha mais pra baixo. "Governo nenhum se importa com a gente, truta." Tem cigarro, não tem fogo. Vai perguntando a quem passa na frente se tem isqueiro ou fósforo. De repente Paulo perde a voz. Estufa as bochechas, parece que vai explodir. Quer evitar o choro.Mas as lágrimas começam a escorrer pelo rosto. Desaba. “Quem você acha que matou aquelas pessoas?”, pergunto. "Ah, truta. Isso aí todo mundo sabe quem foi que matou...até então...Mas só que é o seguinte...a gente é mesma coisa que cachorro na rua, é a mesma coisa que cachorro."
Paulo não sabe se vai ao ato nas escadarias da Sé, acha a caminhada uma bobagem, é meio contrário ao padre Júlio Lancelotti ou a forma como conduz as ações por meio de celebração de missa. Pra ele isso tudo é bobagem e não muda nada. Mas vai pro encontro com os candidatos. “Se tiver microfone aberto quero dizer umas verdades pros políticos e pras ongs". Saímos andando. Nos separamos mais adiante. Paulo no sentido São João Ipiranga, eu cruzo a Líbero Badaró indo pra perto da bolsa de mercados e futuro, onde aconteceu uma das mortes. Passo pela praça da Sé, tá se formando uma correria. Um comboio de carros pára pra distribuir lanches. Os vidros com propaganda política, o porta-malas adesivado com o nome e o número de um candidato a vereador. "Se o Paulo visse isso ia ter confusão na certa!”, pensei. Quase meio-dia, vou pra perto do Mercado Municipal. Sou abordado por três homens de rua. Um deles me conhece, é o Ceará. Animado, conta as novidades. "Eu não sou mais indigente. Tem esse negócio comigo mais não. Logo, logo eu vou buscar minha identidade lá no Poupa Tempo, agora eu sou cidadão". Deixando o apelido de lado, pergunto o nome dele completo e ele diz todo orgulhoso, mostrando o protocolo do RG. “Meu nome é Francisco de Assis Pereira”. Pára um carrão preto quatro portas e nos dá marmitex com arroz, batatas e carne moída. Feijão não tinha, mas como diz Ceará, o novo cidadão, "Tá bom, graças a Deus". Segunda-feira, 18 de agosto. Vou passar a noite em vigília. Amanhã vou encontrar no ato o Romário, o Paulo e o Francisco. A palavra ou o silêncio deles vão valer mais que os discursos de qualquer autoridade. Os candidatos a prefeito prometeram vir para discutir políticas públicas para a população de rua. Passa das 20h e ainda há pouco o sino tocou as dobradas na torre da catedral. Encontro a Kátia, ela declama poesias. Estava arrasada. Me abraçou. Se pra um homem morar na rua é uma tormenta, imagina pra uma mulher. Kátia havia sido desligada do albergue. Desligada e agredida. Bateu boca com uma arte-educadora. Ficou fora de si, ateou fogo em cobertor. Um amigo que a defendeu apanhou dos guardas. Chegou a guarda feminina e a colocou pra fora à força. Kátia levou spray de pimenta nos olhos, eles ainda ardiam. Ela chora mais pela mágoa. "Estou aqui desde a tarde, com fome, hoje não consegui comer nada. Vou dormir mais perto da base da PM. Tou com medo de apanhar de novo." Ela tá com um problema de saúde, descobriu recentemente um mioma. Amanhecerá na praça pra acompanhar o ato e o debate, quer saber: "O que eles vão fazer por nós?". Terça feira - 19 de agostoAs portas da catedral se abrem. Dois faxineiros saem lavando as escadarias. Eu tava sentado escrevendo. Levantamos todos às pressas pra não molhar as calças. Do meio da praça um morador de rua vem correndo, desesperado, pra salvar seus cobertores que o rapaz do rodo tava empurrando com lixo e tudo, enquanto o outro mandava água pra baixo. Perto das 9h da manhã, três pessoas arrumam o chão, ajeitando corpos moldados em cobertores. Prendem ao chão com fita. Começa a celebração ecumênica, o padre Júlio Lancelotti anuncia os líderes religiosos presentes. Um rabino, um hare krishna, uma pastora, e tá presente o novo bispo da diocese. No ponto culminante do ato, vem um caminhão-pipa lavar o pedaço. Os moradores de rua sobem no carro, nas portas, impedindo os garis de continuar a limpeza. O representante ao microfone grita, furioso: "É isso que fazem com o povo da rua". Molham os cobertores do morador de rua, molham o papelão, a pessoa. É essa política higienista!" É ovacionado. Acuado, o motorista desce às pressas com o carro. Vai sendo tocado por moradores de rua, seguido pelos fotógrafos e câmeras. Eu fiquei pensando: “Não foi isso que os faxineiros da igreja fizeram pela manhã? Que contraste, meu Deus!” Me vem a expressão: “Entre a cruz e a espada...”. Os garis descem do caminhão berrando de raiva, um deles tá tremendo, os nervos abalados. Um policial militar se aproxima.O gari que tá enfurecido vem pra cima de mim, eu o encaro. Ele aponta o dedo pra mim e reclama: “Eu devia fazer uma ocorrência contra vocês. Tenho minha mãe doente pra cuidar”. O policial manda o motorista seguir com o caminhão, discute com os garis: “Pô, gente, colabora também.A praça é imensa,vai lavar o outro lado, porra”. O gari discute, mas o policial está determinado: “Vão lavar pra lá. Agora sou eu que tou mandando. Aqui perto não vão molhar.Vai, motorista da linha, vaza daqui!” Instantes depois a celebração acaba, os manisfestantes seguem em marcha até o Sefras, a casa de convivência mais conhecida como “Chá do Padre”. A mesa de honra está montada. Os candidatos são anunciados. O ex-governador, o prefeito-candidato à reeleição e a ex-ministra do turismo faltaram. Eles haviam confirmado. "Vão ter que se explicar, o povo da rua não é baixo escalão, é primeiro escalão e vota. Morador de rua tem título de eleitor", desabafa um representante da população de rua indignado. Kátia está na primeira fileira à direita. Mais uma decepção pra mulher que à noite vai dormir ao relento. O Romário não apareceu, conseguiu vaga em albergue na periferia, bem longe do centro. O Paulo tá fazendo uns corre, andou doidão. O Francisco foi pra boca de rango lá no Belém, saiu cedo pra conseguir senha de almoço. Vou embora também. Entro na Rua Direita.Tem um sanfoneiro sentado no chão, tocando uma melodia que me acalma. Chego perto, paro pra ouvir. Ele pede pra eu colaborar. Na frente dele tem um balde desses de lavar roupas.Umas moedas dentro. Tiro do bolso duas notas de 2 reais. "Saiu as duas, vou dar as duas". Ele tateia as notas com as mãos. Pergunta meu nome. Então se agita: “O Tião? Aquele poeta da rua?” Já ficamos amigos. “Ô, Tião, me ajuda. Cê que escreve aí pros jornais e fala na televisão. Me ajuda encontrar meus parentes.” Começa a falar de sua vida, conta vantagem: “Fui eu que em 83 derrubei o Luiz gonzaga no programa da Inezita Barroso, a grande final ali na praça da Sé. Sou o...Já ouviu falar do...” É o “Gaita Azul da América Latina, o Geraldão do Pandeiro...” Tocou pra filme, O Beijo da Mulher Aranha. “Essa aqui ó...” Junta gente pra ouvir, os olhos nem abrem. "Procurando a família do Teixeira da Costa, lá de Carlos Chagas, da tia Joaquina, que morava na rua do Cruzeiro.O filho dela, José Teixeira da Costa, foi gerente da Pernambucanas lá de Carlos Chagas. E tem mais. Procuro meu irmão que foi se embora pro Mato Grosso.” O filho diz o nome do sanfoneiro: Geraldo Moisés dos Santos. “Se achar notícias, se alguém conhecer meus parentes, pede pra ligar por favor”. E dá um número de celular. “Toco um pouco aqui, um pouco ali, cê sabe, pouco com Deus é muito.”
Finalmente o 19 de agosto se torna um ato pela vida.

entrevistado: Sebastião Nicomedes
repórter: Eliane Brum
publicado no blog da revista Época em 20/08/2008.

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